Explicando a katchanga



"O dever dos juízes é fazer justiça; a sua profissão, a de deferi-la. Alguns conhecem o próprio dever e exercem a profissão." (Jean de La Bruyère)



Gustavo Miquelin Fernandes





Com a probabilidade de Luís Roberto Barroso ser o novo integrante da mais alta Corte judicial do país, um notável defensor neoconstitucionalista, resolvi nesse texto, exageradamente simples, discorrer algo sobre a afamada “Teoria da katchanga”.

Como todos sabem, o neoconstitucionalismo tem a característica marcante de maximizar toda sua tábua princípiológica.

O neoconstitucionalismo (ou constitucionalismo pós-moderno) movimento constitucional que sucedeu ao positivismo, tem como notas peculiares, resumidamente:

a) uma revisitação do conceito valorativo do texto constitucional (Constituição como centro);

b) uma centralização na importância dos direitos fundamentais;

c) busca por maior efetividade constitucional;

d) busca pela concretude de direitos e garantias;

e) um maior intervencionismo e;

f) uma maior valorização dos princípios.

Assim, neste tipo de movimento, os princípios ganham contornos maiores e mais vigorosos, com vistas a se constituírem em instrumentos poderosos para essa nova busca, com vistas à concretização real de direitos.

Princípio, espécie de norma (ao lado das regras, segundo setores da doutrina) ganham nesse movimento uma maxi-aplicação/ampliação dentro do ordenamento constitucional, o que me faz lembrar certa estorinha muito famosa e curiosa, o qual  abaixo reproduzido e é possível melhor compreender.

Cito Lênio Streck, que muito bem faz essa narrativa:


(...) ”existia um Cassino que aceitava todos os tipos de jogos. Havia uma placa na porta: aqui se jogam todos os jogos! Isto é, não havia nada que ficasse de fora do “sistema de jogo” do Cassino. Tratava-se de um Cassino non liquet (na verdade, vedação de non liquet). Um Cassino que era um sistema aberto e fechado ao mesmo tempo (prato cheio não só para hermeneutas, como também para sistêmicos, como Leonel Severo Rocha, com o qual tantas vezes discutimos isso – ele, Warat, Sérgio e eu). Poderíamos chamar esse “sistema do cassino” de uma espécie de “Cassino Fundamental” (um Grundcassino?)…! De uma forma mais sofisticada, pressupõe-se que “todos os jogos sejam jogados”, ou algo nessa linha. As derivações são múltiplas, pois.

Pois bem. Chegou um forasteiro e desafiou o croupier do cassino, propondo-lhe o jogo da Katchanga. Como o croupier não poderia ignorar esse tipo de jogo – porque, afinal, ali se jogavam todos os jogos (lembremos do non liquet) –, aceitou, ciente de que “o jogo se joga jogando”, portanto, não há lacunas no “sistema jogo”.

Veja-se que o dono do Cassino, também desempenhando as funções de croupier, sequer sabia que Katchanga se jogava com cartas… Por isso, desafiou o desafiante a iniciar o jogo, fazendo com que este tirasse do bolso um baralho. Mais: o desafiado também não sabia com quantas cartas se jogava a Katchanga… Por isso, novamente instou o desafiante a começar o jogo.

 O desafiante, então, distribuiu dez cartas para cada um e começou “comprando” duas cartas. O desafiado, com isso, já aprendera duas regras: 1) Katchanga se joga com cartas; 2) é possível iniciar “comprando” duas cartas. Na sequência, o desafiante pegou cinco cartas, devolveu três; o desafiado (croupier) fez o mesmo. Eram as regras seguintes.

Mas o “Grundcassinero” (chamemos ele assim) não entendia o que fazer na sequência. O que fazer com as cartas? Eis que, de repente, o desafiante colocou suas cartas na mesma, dizendo “Katchanga”… e, ato contínuo, puxou o dinheiro, limpando a mesa. O “Grund…”, vendo as cartas, “captou” que havia uma sequência de três cartas e as demais estavam desconexas. Logo, achou que ali estava uma nova regra.

Dobraram a aposta e… e tudo de novo. Quando o “Grund…” conseguiu fazer uma sequência igual a que dera a vitória ao desafiante na jogada primeira, nem deu tempo para mais nada, porque o desafiante atirou as cartas na mesa, dizendo “Katchanga”… Tinha, desta vez, duas sequências…! Dobraram novamente a aposta e tudo se repetiu, com pequenas variações na “formação” do carteado. O “doutor Grund…” já havia perdido quase todo o dinheiro, quando se deu conta do óbvio: a regra do jogo estava no enunciado “ganha quem disser Katchanga primeiro”.

 Pronto. O “doutor” “Grund…” desafiou o forasteiro ao jogo final: tudo ou nada. Todo o dinheiro contra o que lhe restava: o Cassino. E lá se foram. O desafiante pegava três cartas, devolvia seis, buscava mais três, fazia cara de preocupado; jogava até com o ombro… E o “Doutor Grund”, agora, estava tranquilo. Fazia a sua performance. Sabia que sabia!

Quando percebeu que o desafiante jogaria as cartas para dizer Katchanga, adiantou-se e, abrindo largo sorriso, conclamou: Katchanga… e foi puxar o dinheiro. O desafiante fez cara de “pena”, jogando a cabeça de um lado para outro e, com os lábios semi-cerrados, deixou escapar várias onomatopeias (tsk, tsk, tsk)… Atirou as cartas na mesa e disse: Katchanga Real! (A estória da “Katchanga Real”, por Lênio Streck)”.



Ninguém sabia jogar a katchanga, a mesma não existia, nem existiam regras, e quando o forasteiro deu o golpe de misericórdia, bradando pela katchanga real, em atitude de total improviso, levou todo o dinheiro, encerrando-se o jogo ali.

A teoria da katchanga se deve a um professor chamado Luis Alberto Warat.

Seria, em conceito livre, a franca autorização para o uso indiscriminado do menu de princípios e direitos fundamentais previstos na Constituição, e sendo desautorizado todo um sistema de lógica e objetividade fundamentativa, adotar decisões arbitrárias, sem maiores preocupações com o regramento como um todo e com a fundamentação detalhada e objetiva, focado apenas na resolução do direito e a hábil solução dos conflitos através de um decisionismo apressado.

No Brasil, ainda é grande a assimilação da contribuição alexyana com relação à teoria dos princípios.

Robert Alexy contribuiu com o Direito com sua teoria do discurso prático racional geral, influenciando com força grande a doutrina pátria.


Essa estorieta faz justamente crítica a essa característica do neoconstitucionalismo, a ampliação da aplicação principiológica, mais especificamente, no ponto que toca ao livre e despreocupado sopesamento (ou ponderação) dos princípios envolvidos nos cases que são submetidos ao Poder Judiciário.

Haveria uma utilização do famoso brado da jogatina (katchanga!) quando da seleção, pelos manejadores do Direito, de quais princípios se socorreriam em determinado caso concreto. Isso seria feito com uso de certa e perceptível arbitrariedade quando da relativização ou ponderação dos direitos envolvidos.

O magistrado ao analisar caso concreto a ele submetido, pondo-se a confrontar direitos fundamentais ou cânones principiológicos em rota de colisão, em atitude de desprezo pela mais objetiva e profunda argumentação, seleciona, ao seu livre alvedrio, a regra prevalente, emprestando-lhe a cogência necessária e forçando sua aplicação.

Assim, o processo seria um jogo às escuras, sem regras claras que orientassem os aplicadores do Direito (players ou jogadores) e demais jurisdicionados no momento da utilização (em última análise, pelos magistrados) da conhecida técnica da ponderação.

Resultado desse desleixo interpretativo-fundamentativo: a frágil construção do discurso judicial, alicerce das decisões dos juízes, já que não atentam à objetivação dos argumentos quando do momento da prestação judicial.

Não se sabe como se fundamenta. Logo não se sabe como se decide, e essa obscuridade resulta em insegurança jurídica à comunidade jurídica e à comunidade jurisdicionada (população), o que faz estremecer um setor sensível do Estado de Direito, que é o Poder Judiciário.

Deveras, é fácil ofertar a prestação jurisdicional, aplicando a lei ao caso concreto, simplesmente declarando o direito aplicável, num ato de ponderação, sem uma argumentação sólida e sobejamente transparente,, clara e objetiva da razão da prevalência de uns e afastamento de outros princípios (ou direitos fundamentais, regras, etc.). Torna-se tarefa primária e sem muita complexidade.

Sob a rubrica da palavra proporcionalidade ou razoabilidade, que parecem terem se tornados palavras cabalísticas, franqueando tornar despiciendos fatos os mais importantes em detrimento de circunstâncias outras, por meios obscuros, pouco declarados, talvez até desconhecidos.

Fato é que princípios abrem muitas portas decisionais, são vetores fundantes de um sistema, e por causa dessa qualidade etérea permitem julgar com maior amplidão sem as amarras das regras jurídicas que são apertadas e  inelásticas.

As decisões judiciais se tornam mais flexíveis (o que por si só não é ruim), porém traz consigo esse ranço autoritário, verdadeira ditadura dos princípios, onde reinam, sem as pobres regras para ditar-lhes a desprezável  e secundária forma.

Exemplo muito prático e mais didático ainda da situação. Pense em um prefeito de cidade do interior que foi flagrado com certa jovem entrando em um motel; a imprensa é acionada, publicando fotos do casal entrando no estabelecimento.

Sentindo-se prejudicado, o agente público aciona civilmente o Poder Judiciário, pleiteando indenização por danos morais. Em sentença, o juiz assim se manifesta:

“Vislumbro assim, a ocorrência de, neste caso concreto, a incorrência do confronto entre dois princípios de subido valor; até com guarida no texto constitucional. A proteção da intimidade, fincada na proteção da dignidade humane outros valores tão importantes quanto, como a necessidade e liberdade da informação, resvalando inclusive em valores outros como a moralidade administrativa.

Desta feita, pela proporcionalidade que deve imperar em todos os comando decisórios,  entendo deva prevalecer o primeiro dos princípios acima descritos, colocando-o sob maior proteção estatal neste caso concreto, considerando as circunstancias que gravitam em torno dos fatos descritos na inicial.

A reparação ao dano à intimidade, pela sua maior ofensividade, prevalece num contexto de cotejo.


Ante o exposto, e depois de considerar o mais que dos autos consta, JULGO PROCEDENTE o pedido inicial, nos termos do art. 269, I, do Código de Processo Civil, condenando o “Jornal X” a pagar o valor de R$25.000,00, a título de danos morais à requerente, valor este que será atualizado desde a publicação até o efetivo pagamento e juros de 1% ao mês.”    

Segundo o julgador deve prevalecer a intimidade, mas que circunstâncias foram consideradas? Por que meios chegou o juiz a essa conclusão, considerando o caso concreto? O dano a sua imagem é maior que o proibição do conteúdo divulgado porquê? Foram considerados a repercussão do caso; a importância política (até mesmo eleitoral) disso; o abalo psicológico, a possível lesão à cidadania pela omissão da publicação das fotos, etc.?

Quando falo em ditadura, realmente se pretende dizer um farto menu normativo, convivendo numa anarquia hermenêutica e de motivação. Há princípios para tudo, parece que houve uma inversão axiológico-normativa, e principio virou regra, e esta virou princípio.

Lênio Streck chama isso de pan-principialismo, algo como um totalitarismo principiológico.

Outra face da critica é sobre a diluição dos efeitos normativo concretos de todas as normas. Com efeito, em se redobrando a atenção e esforços jurídicos e aplicativos em princípios, este que era de uso excepcional, vira a regra ordinária, banalizando seu uso, diluindo assim sua força normativa.

A crítica também é dirigida àqueles que sacam desses princípios sem o domínio intelectual, sem abarcar a totalidade da teoria que é própria, produzindo decisões (ou qualquer outro ato) de questionável juridicidade.

O que importa realmente é a entrega do direito, a satisfação dikelógica, a resolução do conflito de interesse caracterizado por uma pretensão resistida, colocando-se o veículo dessa função estatal apenas como meio, algo sem muito prestigio e secundário?

Alguns argumentam que há casos até que dispensam a argumentação necessária, por motivos diversos. Seria parecido com o que Mário Quintana poetizou certa feita: “Não tem porque interpretar um poema. O poema já é uma interpretação.”


A reflexão deve passar necessariamente pela motivação dos atos processuais, pela necessidade, inclusive política, da comunidade conhecer os motivos determinantes dos atos de julgamento. Nem se diga a parte negativamente afetada pelo conteúdo decisional.

Bom rememorar ainda o insculpido no artigo 93, IX, da Constituição Federal, onde prega pela boa fundamentação dos julgados – regra que jamais pode ser olvidada. Diria o Norberto Bobbio que Direito Público deve ser feito em público e para o público (entender, inclusive).

Todos, vez ou outra, katchangam na vida: os alunos nos exames, os professores nas aulas, os advogados em seus arrazoados. Assim, podemos falar nessa matéria ex cathedra, com muita autoridade.

Por ora, creio válida a crítica, e não vislumbro como criticismo barato e gratuito, e serve pelo menos para tomarmos consciência do problema (que há, positivamente) e demandáramos por possíveis soluções. A palavra está com os intelectuais do Direito, os nossos doutrinadores.


Uma coisa é certa, contudo: o jogo funciona melhor com regras claras. O processo é o jogo, e as regras são os princípios que devem ser bem observados.

Esse não é mais um jogo de soma zero e, se regras forem bem observadas, todos os jogadores saem ganhando (ou perdendo menos) sem precisa de katchanga.

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