Gustavo Miquelin Fernandes
Privatização, em nossa análise, é um ato
finalisticamente jurídico, com repercussões sérias na área da Administração Pública,
Economia, bem como na seara fiscal, tributária e em toda mentalidade social,
contando, invariavelmente, com apaixonados e “odiadores” profissionais, o que
dificulta o abarcamento intelectual do tema (e do problema), e também o debate
sério e apolítico.
Dessarte,
integra esse conceito em baila, medidas tomadas pelo administrador público para
reduzir o tentacularismo estatal, colocando-o na rota, alegadamente, dos fins
últimos e precípuos que o mesmo se destina, encurtando sua atividade na
produção/distribuição de bens e serviços ao corpo social.
Em
suas múltiplas facetas, de maneira muitíssimo genérica, pode se dar por meio
de:
·
Convênios e terceirização
·
Desmonopolização de atividades econômicas: venda de
ações de empresas estatais ao setor privado;
·
Desregulação: diminuição da intervenção estatal na
economia com eliminação total ou parcial de normas relativas ao mercado,
afrouxamento do marco regulatório;
·
Concessão de serviços públicos;
A
questão da essenciabilidade dos serviços privatizados não é elemento essencial
ao debate, o qual se traduz inepta a discussão, haja vista que qualquer espécie
de serviço é passível de ser privatizado.
Com
já dito acima, em ultima análise é um ato jurídico, com repercussões sob várias
outras áreas; no entanto, o conceito político do processo tem grande aceitação.
Assim,
pode ser dar a privatização pela transferência de execução serviços (assim, de
maneira precária) ou a da propriedade mesma.
A
palavra privatização, no entanto, acredita-se, foi pronunciada primeiramente
pelo economista inglês David Howell, na década de 1970.
Fico
com a significação de privatização, de maneira muito estrita, como a transferência das empresas de propriedade estatal
bem assim as atividades pertinentes para o setor privado que passa a operá-las.
Em
nossa Constituição
Federal, o Poder
Público assumirá serviços e atividades apenas, direta ou indiretamente, através
das estatais, levado por imperativos de relevante interesse coletivo (art. 173,
caput).
São,
como sabemos, conceitos jurídicos vagos, ou seja, aqueles dotados de alta carga
de subjetividade, que conferem ao operador do Direito, uma discricionariedade
ampla quando da tarefa de interpretação.
No
nível legal, a lei disciplinadora da matéria é a Lei 9.491/97.
Veja-se
que a Lei nominada "abrange apenas a transferência de ativos ou de ações
de empresas estatais para o setor privado".
Vejamos
alguns aspectos da lei.
"§
1º. Considera-se desestatização:
a)
alienação, pela União, de direitos que lhes assegurem, diretamente ou através
de outras controladas, preponderância nas deliberações sociais e o poder de
eleger a maioria dos administradores da sociedade;
b)
a transferência, para a iniciativa privada, da execução de serviços públicos
explorados pela União, diretamente ou através de entidades controladas, bem
como daqueles de sua responsabilidade.
c)
a transferência ou outorga de direitos sobre bens móveis e imóveis da União,
nos termos desta Lei."
O
artigo 2º da mesma lei diz que podem ser objeto de desestatização:
"Art.
2º. Poderão ser objeto de desestatização, nos termos desta Lei:
I
- empresas, inclusive instituições financeiras, controladas direta ou
indiretamente pela União, instituídas por lei ou ato do Poder Executivo;
II
- empresas criadas pelo setor privado e que, por qualquer motivo, passaram ao
controle direto ou indireto da União;
III
- serviços públicos objeto de concessão, permissão ou autorização;
IV
- instituições financeiras públicas estaduais que tenham tido as ações de seu
capital social desapropriadas, na forma do Decreto-Lei nº 2.321, de 25 de
fevereiro de 1987;
V
- bens móveis e imóveis da União."
Voltando
à perfunctória análise desse processo de desestatização, faz-se mister um breve
passeio histórico.
Sabe-se
que resumidamente, após a Segunda Grande Guerra, houve uma intolerância grande
ao Liberalismo, sagrando-se o Estado do Welfare
State ou Providencial, o qual, com o correr do tempo, sofreu um processo de
hipervalorizaçao, inclusive com sua atuação maciça na ordem econômica para
corrigir distorções possivelmente existentes nessa mesma ordem mercadológica.
No plano teórico, contribuições pesadas de Keynes.
Neste
período do pós-guerra, e após o grande “crash” de 1929, a função elementar
estatal seria assumir diretamente e com responsabilidade grandiosa a execução
de um cardápio prestacional previsto nas Constituições implicadas.
O
modelo providencial, logo a partir da década de 50, começou a extrapolar seus
limites toleráveis, crescendo a musculatura estatal para níveis realmente
grandes, e logicamente a base de sustentação do modelo, que é sempre tributária,
cresce elasticamente, sensível àquela expansão.
No
Governo de Getúlio Vargas, verificou-se esse fortalecimento da presença do
Estado no ambiente econômico, com a criação de inúmeras estatais. Na vigência
da Constituição de 1937 foram criadas algumas importantes sociedades de
economia mista: Companhia Nacional de Álcalis (Decreto-Lei n.º 5.684/43), a
Companhia Vale do Rio Doce (Decreto-Lei n.º 4.352/42), o Instituto de
Resseguros do Brasil (Decreto-Lei n.º 1.186/30), a Companhia Siderúrgica
Nacional (Decreto-Lei n.º 3.002, de 1941), PETROBRÁS (Lei n.º 2004, de 1953),
ELETROBRÁS (Lei n.º 3.890-A, de 1961),
TELEBRÁS (Lei n.º 5.792, de 1972), ad
exemplum.
Correndo
um pouco no tempo, durante o Governo militar realizaram-se grandes obras de
infra-estrutura, em um processo de pernicioso faraonismo militar, que tão mal
fez ao país, ampliando-se, neste esforço, a órbita da atuação do Estado na
ambiência econômica.
Uma
peculiaridade ocorre neste momento da vida nacional; o fomento público do BNDES
à entidades privadas, sendo que os devedores dessas instituições bancárias
(incluindo o BB), quando não saldavam suas dívidas, convolavam-se em sócios da
União. Veja que o Estado assumia serviços não essências à comunidade administrada,
contrariado o espírito do hoje artigo 173 da CF.
Essa
ideologia do pós-guerra culmina com o maxivalorização dos chamados direitos
sociais e econômicos, implicando também a maxidemanda populacional, levando o Estado
ampliar rol de suas atribuições sempre vinculadas a uma carta constitucional;
isso tem a ver com serviços públicos, nem sempre tão genuinamente públicos, mas
como nos exemplos da Era Vargas, serviços comerciais e industriais prestados
pelo Estado.
Assim,
com a criação indiscriminada de órgãos, gerando densa burocracia; existência de
monopólios legais a favor do Poder Público, Estado-prestador-empresário-provedor;
o detentor desse monopólio tende ficar mais autoritário e mais desrespeitador
da liberdade do mercado e atingindo, em cheio, a liberdade individual e livre
iniciativa, também princípios constantes da atual Constituição.
Isso
sempre representou porta aberta aos apelos populistas da sociedade, tanto quanto
a resposta populista do Estado.
Aí
se encontra o nascedouro da crise, com a entrada do Estado em todo e qualquer campo
que dantes não o pertencia, explodindo a carga fiscal, expondo a grande crise
do Estado-Providencia nos anos 80, pelo intervencionismo desmesurado.
Como
resposta a essa múltipla crise, nascem diversas ideologias, dedicadas a
entender e combater esse tensionamento estatal, pelo que faremos uma breve
análise.
A
esquerda esclerosada não tinha nem idéia que o modelo que ela defendia estava
equivocado, e já em processo de fadiga ideológica, não tinha a mínima condição
de prosperar, eis que não era um remédio para o problema: era o próprio
problema.
Os
neoliberais com as ideias do Estado-Essencial, perseguindo a emissão monetária
e déficit zero, apenas.
Os
de centro-esquerda pragmática ou sociais-democratas esposavam o ideal do
controle fiscal, livre comércio, desregulação, terceirização e privatização. Pregavam
a adoção de políticas públicas e setoriais, mas com a devida parcimônia, sem
grandes ingerências.
Assim,
o Welfare State, o gigantismo
peculiar do modelo, o populismo, constantes déficits públicos, fez nascer
vigorosamente um movimento de viés neoliberal.
O neoliberalismo,
ligado no plano teórico à Escola de Chicago, liderados por Friedmann, acabou
por influenciar poderosamente as políticas econômicas e sociais dos Estados
Unidos, tendo como representantes, Ford, Carter e Reagan.
Primados
desta ideologia resumem-se que ao ente estatal cabe atividades peculiares e
indeclináveis, como órgão primário de poder, como segurança, defesa, Poder
Judiciário, Poder Legislativo, atacando áreas privadas apenas quando este setor
não se mostrar interessado ou mesmo insuficiente ou até despreparado.
No
Chile, destacava-se o processo em estudo, sob a inspiração da Escola de Chicago,
levada a cabo por Pinochet.
Com
a queda do comunismo europeu, no final dos anos 80, o ideal privatista ganhou
vigor, sobretudo inspirado por Thatcher, com seu ideal do capitalismo popular e
que iniciou um vigoroso projeto de privatização com ferrenha oposição de
esquerdopatas e sindicatos.
Contudo,
a bem da verdade, os vanguardistas deste processo foram pelos governos
tipicamente vermelhos, tais como Austrália, Rússia, Nova Zelândia e República
Checa.
No
Brasil a privatização tem marco no tempo com o presidente João Figueiredo
(1981-1984), por via do Decreto 86.215/81 e O "Programa Nacional de
Desburocratização", veiculado pelo Decreto 83740/1979, e não por Collor e
FHC, com sói se propaga.
No
governo Fernando Collor de Mello (1990-1992) através da Lei 8.031/90 - "Programa
Nacional de Desestatização" – foram privatizadas 32 empresas de siderurgia
e petroquímica, mormente.
Foi
no Governo Fernando Henrique Cardoso que o processo se potencializou com a quebra
de monopólios pela Emenda Constitucional nº 8 e a transferência de serviços
públicos a particulares, mediante autorização, permissão e concessão.
A Vale do Rio Doce, a Light e o sistema Eletrobrás
foram privatizados nesta época de nossa história.
No
início do processo, moedas de privatização foram aceitas, e atualmente é grande
a participação do BNDES e fundos de pensão, ou seja, os trabalhadores mesmos
participam do processo de apropriação da empresa.
Todas
as centenas de ações propostas contra a União pelos contrários aos processos de
privatização de empresas foram julgadas, tendo a União vencido todas.
Ressalte-se
que, no Brasil, a privatização apresenta resultado largamente positivo.
Veja
exemplo inexoravelmente citado da telefonia que universalizou o acesso aos
usuários-consumidores.
Havia
em 1998, 22 milhões de telefones no país, a instalação demorava cinco anos com
preço de 8.000 reais; veja que a realidade hodierna é bem outra: em 2005 já
haviam 125,7 milhões de aparelhos em funcionamento -fixos e celulares.
A
receita no setor subiu 900%, de 11 bilhões de reais e batendo em 110 bilhões de
reais.
Vamos
ao caso das rodovias.
Segundo
pesquisa da Confederação Nacional dos Transportes, 55% das rodovias
privatizadas são consideradas ótimas, e apenas 7% das rodovias públicas.
Assim, o programa levado a cabo ajudou reduzir o
déficit público e consolidar a estabilização pelo qual o país passava,
integrando, como etapa necessária, o projeto de saneamento do país.
O
setor privado presta serviços a um custo imensamente inferior ao do governo, e
isso é lugar-comum.
Evidente
que o mercado tem funcionamento, do ponto de vista de eficiência superior ao
setor público, seria uma falácia admiti-se o contrário, isso é apenas um dos
motivos da qualidade dessa reengenharia operacional pelo qual o Estado foi
submetido.
Com
o processo de privatização de empresas e serviços, o Estado volta a suas
funções clássicas, concentrando-se em serviços de relevância primária, tem
melhoria de eficiência em escala; aumento fiscal pelas vendas e pela ausência
dos custos de produção; colocação de novos agentes no mercado produtivo;
aumento da entrada tributária e muitos outros benefícios.
A
crítica que faz, por ora, ao processo brasileiro é a intensa participação do
BNDES e dos fundos de pensão, ou seja, é um processo de entrega ao setor
privado, com recursos públicos. Um conceito altamente contraditório e que
merece debate e quiçá revisão.
Outra
observação apontada é que, no caso brasileiro, não há legítima desestatização,
e sim simples privatização, pois que o Estado ainda continua regulando o setor,
que por aqui, copiado do modelo norte-americano, se faz por meio das agências
reguladoras.
Assim,
aponta, especialmente a escola austríaca, em razão de ausência de um livre
mercado, e por extensa regulação agencial, os serviços são muito ruins, algo
resolúvel pela genuína desestatização dos setores.
Interessante
que a escola de Chicago através da “teoria da captura” faz uma análise dessa
imbricação regulação-empresa, altamente pessimista, masque, por ora, não vamos
abordar por aqui, sendo objeto de um novo estudo.
Veja
se que há exemplos de sobejo que demandam a ação privatista, verbi gratia, a Petrobras, usada
politicamente (e descaradamente) pelo Governo Federal.
Recentemente
foram divulgados os balanços pertinentes, dando conta do prejuízo que esta
estatal sofre, sendo que suas ações também caíram de maneira abjeta. A estatal
tem uma dívida bilionária (cerca de R$140 bi).
Em
comparação, o lucro da VDRD subiu 30 vezes desde sua privatização. Repita-se:
30 vezes!
Em
argumentação contrária, com relação à Petrobras, há os que dizem que a mesma é
a maior geradora de tecnologia nacional, tem caráter estratégico, tem uma
peculiar historicidade e outras razões nacionalistas.
Agora
imagine o que não poderia contribuir em termos de tecnologia nas mãos da iniciativa
privada?
Quanto à questão estratégica, o termo é perigoso, e de conotação fascista, usado desavergonhadamente por governos autoritários para justificar ações pouco ortodoxas.
A
bem da verdade, é impossível crescer sem investimentos em infraestrutura ou
apenas com capital governamental, o Governo despertou para essa questão,
recentemente.
O
investimento em infraestrutura é de apenas 2%, na média, por ano. Na verdade, o
Estado é custoso, e sempre crescente por razões diversas que demandarão outro
artigo.
A
privatização é assim um meio, que feito às claras, com participação das
instituições republicanas competentes (MP, TCU, Controladoria), altamente
recomendado para fazer face aos novos desafios impostos pela globalização.
Disso
não podemos correr.
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