Gustavo
Miquelin Fernandes
Nominada teoria ensina, no campo
da imputação penal e dentro do tema concurso de pessoas, uma diferenciação
entre autores e partícipes (autor
responde por ato próprio e tem responsabilidade originária; partícipe responde
por concorrer em ato de terceiro alheio e tem responsabilidade acessória) num
contexto de cometimento de infração penal.
O estudo dessa teoria hoje
importa por dois motivos. A existência do mundo globalizado, que traz uma
complexidade de relações burocráticas e corporativas entre empresas, organizações
ilícitas, Estados e entre uns e outros. Dessa complexidade nascem novas formas
de arranjos criminosos – o que deve trazer também novas tomadas de posições
acerca do respectivo fenômeno jurídico-penal. É também sabido que a teoria em
exame foi adotada pelo Tribunal Penal Internacional e outros países já utilizam
esse esquema de imputação penal.
A
origem remota da teoria pode ser colhida de Welzel e doutrinadores mais
antigos, como Eb. Schmidt, Lobe, Maurach, Gallas, sendo sistematizada
por Claus Roxin (Täterschaft und Tatherrschaft
- Autoria e Domínio do Fato - 1963).
Luís Greco
E Alaor Leite, em artigo publicado no IBCCRIM, na Revista Liberdades, nº 7,
maio-agosto de 2011, intitulado “Claus Roxin, 80 anos”, trazem importante
ensinamento acerca de Roxin e sua doutrina:
A monumental tese de
habilitação sobre Autoria
e domínio do fato,[18] que foi republicada em 8ª edição
um fato histórico na Alemanha, país em que abundam boas bibliotecas, de modo
que monografias dificilmente chegam a uma segunda edição
exigiria mais do que um artigo, que quer ser uma mera notícia, pode oferecer. É
difícil exagerar a
importância do livro, sua riqueza de ideias e a dimensão de sua influência na
doutrina e na jurisprudência, alemã e estrangeira. O Autor retornou ao tema
comentando os dispositivos da autoria e da participação em duas edições do mais
renomado dos comentários ao Strafgesetzbuch,
o Leipziger Kommentar,[19] e
no segundo volume de seu Tratado.[20]
Roxin se propõe a
construir o sistema da autoria no direito penal, levando adiante a ideia, até
então meramente insinuada, de que autor é quem atua com o domínio do fato.
Ponto de partida de Roxin é a ideia de que o autor é a figura central do acontecer típico (Zentralgestalt des
tatbestandsmäßigen Geschehens).[21] O
partícipe, por sua vez, é quem contribui para um fato típico em caráter
meramente secundário.[22]
aa) Num primeiro
grupo de delitos, a figura central é quem domina a realização do tipo. Esse
domínio pode manifestar-se como um domínio
sobre a própria ação (Handlungsherrschaft),
que é o domínio próprio de quem realiza, em sua própria pessoa, todos os
elementos de um tipo, isto é, do autor
imediato.[23] Quem
aperta o gatilho tem o domínio da ação e nunca poderá ser mero partícipe, ao
contrário do que muitas vezes decidira a jurisprudência alemã, partindo de uma
teoria subjetiva extrema.[24]
bb) A segunda maneira
de dominar um fato está no domínio da
vontade (Willensherrschaft)
de um terceiro que, por alguma razão, é reduzido a mero instrumento.[25]
(1) As razões desse
domínio, próprio do autor mediato,
são, em primeiro lugar, a coação
exercida sobre o homem da frente.[26] Aqui,
propõe Roxin o por ele chamado princípio
da responsabilidade (Verantwortungsprinzip):
ao exculpar o homem da frente em casos de coação, o legislador dá por entender
que quer responsabilizar por seus atos o homem de trás que provoca ou que se
aproveita dessa situação.[27] O
princípio da responsabilidade é, a seu ver, o único parâmetro viável nos casos
de coação, uma vez que dominar alguém que sabe o que faz é algo, em princípio,
excepcional, que só pode ser admitido com base nos parâmetros fixados pelo
legislador.
(2) Um segundo grupo
de razões para a autoria mediata está no erro.[28] Roxin
desenvolve uma teoria escalonada dos vários erros fundamentadores de autoria
mediata, que vão desde o erro de tipo até o erro de proibição evitável.[29] Também
erros que não excluem nem diminuem o dolo ou a culpabilidade do homem da
frente, como o error in persona
(A diz a B: pode atirar, é C, mas, como sabia A, se tratava de D), ou mesmo erros
sobre a quantidade do injusto (A diz a B: destrua esse quadro, é uma mera cópia de um
Rubens,
apesar de saber que se trata de um original), bastam para fundamentar uma
autoria mediata, pois essa, para Roxin, encontra sua razão última no conhecimento superior (überlegenes Sachwissen) do homem de trás, que lhe permite controlar o homem
da frente como se esse fosse uma marionete.[30]
Nesse segundo grupo
de razões para uma autoria mediata, talvez se encontre uma das mais originais
contribuições de Roxin para a dogmática da autoria e da participação. Além do
domínio sobre a vontade de um terceiro por meio de erro ou de coação, propõe Roxin
que se reconheça a possibilidade de domínio por meio de um aparato organizado de poder.[31] Aquele
que, servindo-se de uma organização verticalmente estruturada e apartada da
ordem jurídica, emite uma ordem cujo cumprimento é entregue a executores
fungíveis, que funcionam como meras engrenagens de uma estrutura automática,
não se limita a instigar, mas é verdadeiro autor mediato dos fatos realizados.
Isso significa que pessoas em posições de comando em governos totalitários ou
em organizações criminosas ou terroristas são autores mediatos, o que está em
conformidade não apenas com os parâmetros de imputação da história como com o
inegável fato de que, em estruturas verticalizadas, a responsabilidade tende
não a diminuir, mas sim a aumentar em função da distância que se encontra um
agente em relação ao acontecimento final.[32]
(3) A terceira
maneira de dominar um fato está numa atuação coordenada, em divisão de tarefas,
com pelo menos mais uma pessoa. Se duas ou mais pessoas, partindo de uma
decisão conjunta de praticar o fato, contribuem para a sua realização com um
ato relevante na fase de execução (e não na fase preparatória) de um delito,
elas terão o domínio funcional do fato
(funktionale Tatherrschaft), que fará de cada qual
coautor do fato como um todo.[33]
(4) O critério do
domínio do fato não é proposto com pretensões de universalidade. Há delitos
cuja autoria se determina com base em outros critérios. O primeiro e mais
importante desses delitos é o grupo dos chamados delitos de dever ou, como
preferem os espanhóis, delitos de
violação de dever (Pflichtdelikte).
Neles, autor é quem viola um dever especial, de caráter extrapenal, pouco
importando o domínio que tenha sobre o fato.[34] Entre
os delitos de dever, encontram-se, principalmente, os delitos próprios (delitos
de funcionário público, por ex.) e os delitos omissivos impróprios (em razão da
posição de garantidor). Outro importante grupo de delitos cuja autoria é regida
por critérios distintos do domínio do fato é o dos delitos de mão própria: neles, autor é exclusivamente quem
pratica, em sua própria pessoa, a ação típica, sendo impossível a autoria
mediata.[35] Por
fim, os , que inicialmente foram entendidos por Roxin como delitos de dever,
são regidos pelo conceito unitário de autor.[36]
(5) Como foi dito, a influência do livro mal pode ser
exagerada. As ideias nele contidas estão no centro da discussão até os dias de
hoje. Na presente sede, limitar-nos-emos a referir a duas delas: a dos delitos
de dever e a da autoria mediata por domínio de organização. A figura dos delitos de dever não só encontrou
acolhida em grande parte da doutrina,[37] como
também foi erigida por Jakobs e sua escola em um dos pilares de sua teoria
estritamente normativista do injusto penal.[38] E
a possibilidade de uma autoria mediata
por meio de aparatos organizados de poder, depois de tornar-se doutrina
majoritária,[39] foi
admitida não apenas pela jurisprudência alemã,[40] como
também pela de outros países, como Argentina e Peru,[41] e
encontrou reconhecimento no direito penal internacional.[42] A
figura originou uma das mais intensas discussões da atualidade, em que se
debate, principalmente, se a figura sequer deve ser reconhecida[43] e,
num plano mais concreto, se ela deve ser aplicada também a organizações não
dissociadas do direito, isto é, a empresas.[44]
Em suma, o conceito de autor, neste estudo, é aquele chamado “dominador do fato” e que tem um poder de domínio sobre a execução e consumação do ilícito. É o indivíduo que, usando de sua posição burocrático-institucional de mando, emite ordem de cometimento de crime, tendo controle sobre esse processo delituoso.
Partindo do dominador do fato (“homem
de trás” ou “Hintermann”) o
estopim intelectual, seguido do ato de mando a um agente, ligado àquele por circunstâncias
de hierarquia, mantendo o primeiro o domínio da cadeia causal criminosa ou
tendo o domínio final do fato.
É, em essência, uma teoria não-objetiva,
ainda que haja discordâncias e nuances neste sentido. Mas correto dizer que se
volta mais atenção ao domínio psicológico dos elementos que compõem o iter criminis.
O autor intelectual, ainda que não
atue de maneira ostensiva, não configura mero partícipe, e sim autor propriamente
dito, em razão de seu poder de mando,
ou seja, do controle da maquinação criminosa e da influência exercida em seu hieraquizado
(s).
Comentário
adicional: há possibilidade de coautoria nesse caso, existindo outros
dominadores do fato. E outro: não existe aplicação do domínio do fato nos crimes
culposos, por absoluta e intrínseca incongruência dessa tentativa.
Assim, desnecessário estar o
autor obrigatoriamente inserido em alto cargo no escalão da instituição que o
abriga profissionalmente, o que é necessário é o poder na causação criminal que, por definição, é encontrado nos
altos cargos. A importância não advém do posto profissional galgado, e sim do
poder de mando que esse mesmo cargo concede.
Quer dizer, ainda que não seja o Chairman da instituição, é imprescindível
seja comandante e monitor do desenrolar delituoso dos agentes envolvidos. Que participe
do fato, ao menos intelectualmente - tendo domínio dos fatos que constituem o iter, por meio da subordinação exercida.
Autor, dessa forma, é quem, ainda que não pratique atos materiais ou físicos,
controla ou domina subjetivamente a trama criminosa.
Os requisitos da aplicação de
referida teoria podem ser assim desenhados, muito que simploriamente:
a) estrutura burocrática,
aparelhada hierarquicamente;
b) existência de ordem de
execução pelo“dominador dos fatos ou “homem de trás";
c) efetivo domínio da trama
criminosa pelo emissor da ordem ou dominador dos fatos;
d) fungibilidade dos agentes executores.
Questão que dever se esclarecida
é a da exclusiva ratio para condenação
pela tão só posição burocrática assumida na empresa/órgão/corporação. A situação
hierárquica do dominador não garante condenação nenhuma: há que se ter a emissão de ordem para o cometimento dos
delitos e o efetivo domínio sobre os fatos práticos pelos agentes subordinados.
Nem necessário dizer: tudo devidamente provado.
Não é possível condenar com base
nessa teoria, em razão da presunção de inocência, tão apenas pelo cargo
assumido ou mandato desempenhado ou que o indivíduo era plenipotenciário ou de
competência ou atribuições muito vastas. O critério é insuficiente, o que não
prescinde jamais da emissão da ordem dolosa para a prática do ilícito. Estaria
configurada autêntica presunção de culpabilidade, o que é inconcebível, e,
repita-se, há que se ter provas da emissão da ordem – sob pena de adoção da
responsabilidade penal objetiva.
Seguem alguns textos jurisprudenciais
que citam a teoria em exame.
Data
de publicação: 19/07/2012
Ementa:
APELAÇÃO CRIMINAL. LATROCÍNIO. AUTORIA E MATERIALIDADE PLENAMENTE
DEMONSTRADAS. PRETENSÃO DE DESCLASSIFICAÇÃO PARA ROUBO. ALEGAÇÃO DE QUE O RÉU
NÃO PRATICOU A CONDUTA QUE RESULTOU NA MORTE DA VÍTIMA, E QUE POSSUÍA A
INTENÇÃO DE PARTICIPAR DE CRIME MENOS GRAVE. DESCABIMENTO. APLICAÇÃO DA TEORIA
DO DOMÍNIO DO FATO. RÉU QUE PARTICIPOU ATIVAMENTE DE TODO O FATO
DELITUOSO. CLARA DIVISÃO DE TAREFAS. APELANTE QUE DEVE SER CONSIDERADO COMO
COAUTOR DO CRIME DE LATROCÍNIO. PRECEDENTES. DOSIMETRIA DA PENA ESCORREITA.
RECURSO NÃO PROVIDO. Não se mostra possível a desclassificação do delito para
roubo, já que o apelante assumiu o risco de produzir o resultado mais grave, e
participou ativamente de toda a execução do delito, devendo responder como
coautor do delito de latrocínio, aplicando-se, ao caso, a teoria do domínio
do fato.
Data
de publicação: 25/09/2013
Ementa:
PENAL E PROCESSUAL PENAL. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA (ART. 1º , I , DA
LEI Nº 8.137 /90). TEORIA DO DOMÍNIO DO FATO. AUTORIA
DEMONSTRADA. 1. Embargos infringentes em face de acórdão da 1ª Turma deste
egrégio Tribunal que, por maioria, deu parcial provimento à apelação criminal
interposta pelo réu, para, mantendo a condenação do 1º grau pela prática do
delito previsto no art. 1º , I , da Lei nº 8.137 /90, apenas reduzir a pena
privativa de liberdade imposta. 2. Busca o embargante prevalecer o voto
minoritário, que divergiu da maioria do órgão colegiado apenas quanto à autoria
do delito. Desta forma, estes embargos limitam-se à discordância quanto à
autoria do crime, uma vez que não houve divergência no tocante à materialidade
do delito contra a ordem tributária previsto no art. 1º , I , da Lei nº 8.137
/90. 3. O sujeito ativo dos crimes contra a ordem tributária não é
necessariamente a pessoa que pratica o comportamento descrito na lei penal,
mas, sim, aquele que possui o domínio do fato, ou seja, sem
executar diretamente a conduta típica, controla a atividade de outro que a
realiza. 4. In casu, na época dos fatos delitivos - 2000 a 2002, em que
pese o embargante não fazer parte do quadro societário da empresa sonegadora,
há provas robustas nos autos de que era ele quem traçava os destinos da pessoa
jurídica. Ressalte-se depoimento de uma das testemunhas arroladas pela defesa e
interrogatório do embargante nos autos da Ação penal nº 2004.83.00.006842-6,
onde o recorrente reconheceu ser o administrador da sociedade. 5. Embargos
infringentes improvidos.
Assim,
podemos resumir a Teoria do Domínio do Fato como uma teoria de imputação penal
objetivo-sujetiva que alcança e aponta como autor o “dominador efetivo do fato”,
portador do poder de mando em determinada estrutura corporativa (Estado,
organização, empresa) e que, através de uma esquemática hierárquica e de
subordinação, faz com que outros agentes se empenhem diretamente no desenrolar
do ilícito que a ele interessa, mantendo o primeiro o manejo da cadeia causal e
o domínio final do fato.
Espero
ter colaborado um pouco com o debate dessa matéria, que começa ganhar seus
contornos de importância no país.
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