Apontamentos sobre a Lavagem de Capitais



 http://www.fbi.gov/stats-services/publications/law-enforcement-bulletin/april-2012/image/cash-cuffs.jpg

Gustavo Miquelin Fernandes


Lavagem de capitais ou lavagem de dinheiro é a atividade que dissimula a origem ilegal de bens ou valores originários de infração penal para, em seguida, reintegrá-los à circulação econômica sob aparência lícita, de modo que não se perceba vestígios de infrações. Pode-se dizer que é o conjunto de atos que visam a retirar o espectro de ilicitude de bens e valores para que possam ser reinvestidos no fluxo da economia por sob o manto da legalidade, sem qualquer ligação com crimes anteriormente cometidos.

Um criminoso, por exemplo, pode investir o dinheiro do tráfico na exploração de uma empresa de publicidade e propaganda, por meio de atos e manobras financeiras e jurídicas que apaguem qualquer traço de ilegalidade da referida exploração empresarial.

Aqui está, portanto, o cerne e a razão de ser do crime organizado, o dinheiro.

A lavagem de capitais está prevista na Lei 9.613/98, recentemente alterada pela Lei 12.683/12.

Em Portugal, é comum a expressão “branqueamento de capitais”, onde a conduta constitui crime previsto no artigo 368.º – A do Código Penal.

O retrospecto histórico liga-se à Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico de Drogas de 1988, realizada em Viena e ratificada pelo Brasil pelo Decreto 154/91, comprometendo-se, nosso país, a punir a lavagem de capitais.

A citada Lei nº 9.613, de 3 de março de 1998, que além de dispor sobre os crimes de “lavagem”, diz sobre a prevenção da utilização do sistema financeiro para ilícitos e cria o Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF, onde define o crime em questão:

Art. 1º Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal.

Observe-se que o texto se refere a uma “infração penal” precedente. Entende-se aqui qualquer infração penal, até mesmo a contravenção (jogo do bicho, por exemplo, previsto na Lei das Contravenções Penais).

A redação anterior dessa lei (alterada pela Lei nº 12.683/12) especificava quais crimes poderiam ser considerados “antecedentes” do crime de lavagem como, por exemplo, o tráfico. Desta forma, chama-se essa técnica, que compreende qualquer tipo de transgressão, de “Legislação de 3º Geração ” (ou Sistema Argentino).

Por óbvio, a infração anterior necessariamente deve gerar bens ou valores que depois serão lavados.
Chama-se de “crime acessório” pois que depende daquela infração anterior ou também em “crime parasitário”.

A pena compreende a reclusão, de 3 a 10 anos e multa, aumentada de um a dois terços, se os crimes forem cometidos de forma reiterada ou por intermédio de organização criminosa.(§ 4º).

Segundo o artigo artigo 2º, da Lei 9.613/98, da infração antecedente, deve-se pelo menos ter indícios suficientes para, assim, se iniciar o processo criminal.

§ 1o A denúncia será instruída com indícios suficientes da existência da infração penal antecedente, sendo puníveis os fatos previstos nesta Lei, ainda que desconhecido ou isento de pena o autor, ou extinta a punibilidade da infração penal antecedente.

É necessário esclarecer que a existência de indícios suficientes da existência da infração antecedente, necessários para o recebimento da denúncia, é mero juízo de probabilidade, e não juízo de certeza.

Sobre tal autonomia, cite-se jurisprudência selecionada pela Advocacia Geral da União – AGU:

STF – HC 89739 / PB – PARAÍBA HABEAS CORPUS Relator(a): Min. CEZAR PELUSO Julgamento: 24/06/2008 Órgão Julgador: Segunda Turma Publicação DJe-152 DIVULG 14-08-2008 PUBLIC 15-08-2008 EMENT VOL-02328-02 PP-00323 RB v. 20, n. 540, 2008, p. 23-26 RT v. 97, n. 877, 2008, p. 494-499Parte(s)
EMENTA: 1. AÇÃO PENAL. Denúncia. Imputação do crime de lavagem de dinheiro. Art. 1º, VII, da Lei nº 9.613/98. Corrupção ativa como crime antecedente. Indícios suficientes da sua existência. Instrução hábil da denúncia daqueloutro. Aptidão reconhecida. Inteligência do art. 2º, II e § 1º, da Lei nº 9.613/98. Provas fundantes da imputação de outro crime figuram indícios do crime antecedente ao de lavagem de dinheiro e, como tais, bastam ao recebimento de denúncia do delito conseqüente.

(…)

STF – HC 94958 / SP – SÃO PAULO, HABEAS CORPUS, Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA, Julgamento: 09/12/2008 , Órgão Julgador: Segunda Turma, Publicação DJe-025 DIVULG 05-02-2009 PUBLIC. 06-02-2009, EMENT VOL-02347-04 PP-00734, Decisão: à unanimidade.

EMENTA: HABEAS CORPUS. CRIME DE LAVAGEM DE DINHEIRO. PROVA DA MATERIALIDADE DO DELITO ANTECEDENTE. DESNECESSIDADE, BASTANDO A EXISTÊNCIA DE INDÍCIOS. INÉPCIA DA DENÚNCIA. NÃO OCORRÊNCIA. AUSÊNCIA DE MOTIVO SUFICIENTE PARA O TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. ORDEM DENEGADA. Não é inepta a denúncia que, como no caso, individualiza a conduta imputada a cada réu, narra articuladamente fatos que, em tese, constituem crime, descreve as suas circunstâncias e indica o respectivo tipo penal, viabilizando, assim, o contraditório e a ampla defesa. A denúncia não precisa trazer prova cabal acerca da materialidade do crime antecedente ao de lavagem de dinheiro. Nos termos do art. 2º, II e § 1º, da Lei 9.613/1998, o processo e julgamento dos crimes de lavagem de dinheiro “independem do processo e julgamento dos crimes antecedentes”, bastando que a denúncia seja “instruída com indícios suficientes da existência do crime antecedente”, mesmo que o autor deste seja “desconhecido ou isento de pena”. Precedentes (HC 89.739, rel. min. Cezar Peluso, DJe-152 de 15.08.2008). Além disso, a tese de inexistência de prova da materialidade do crime anterior ao de lavagem de dinheiro envolve o reexame aprofundado de fatos e provas, o que, em regra, não tem espaço na via eleita. O trancamento de ação penal, ademais, é medida reservada a hipóteses excepcionais, como “a manifesta atipicidade da conduta, a presença de causa de extinção da punibilidade do paciente ou a ausência de indícios mínimos de autoria e materialidade delitivas” (HC 91.603, rel. Ellen Gracie, DJe-182 de 25.09.2008), o que não é caso dos autos. Ordem denegada.

O crime de lavagem de valores pode ser praticado por qualquer pessoa, não se exigindo condição especial do agente criminoso.

Existe ainda a figura da autolavagem (ou selflaundering) quando o próprio autor da infração antecedente pratica a lavagem de capitais.

Desta forma, imperioso acrescentar que não é necessário atuar na infração antecedente para incorrer no delito de lavagem.

Entretanto, exige-se a presença de dolo, ou seja, a vontade livre e consciente de praticar o crime, tendo-se ciência da da ilicitude da conduta anterior, geradora dos bens ou valores que estão sendo lavados.
Quanto à possibilidade dolo eventual (quando o agente prevê o resultado do crime, sem querer que ocorra, mas assumindo seu risco), cite-se jurisprudência também selecionada pela AGU:

Dolo eventual e Lavagem de Dinheiro
Acórdão Origem: TRIBUNAL – QUARTA REGIÃO, Classe: ACR – APELAÇÃO CRIMINAL, Processo: 199970040022284 UF: PR, Órgão Julgador: SÉTIMA TURMA
Data da decisão: 18/11/2008 Documento: TRF400173471, Fonte D.E.26/11/2008, Relator(a) GERSON LUIZ ROCHA, Decisão: por unanimidade.

Ementa:

PENAL. POSSE ILEGAL DE ARMA DE FOGO. ART. 10, § 2º, DA LEI Nº 9.437/97. DESCLASSIFICAÇÃO PARA O CAPUT DO ART. 10. DESCABIMENTO. LAVAGEM DE DINHEIRO. ART. 1º, INC. I, DA LEI Nº 9.613/98. DISSIMULAÇÃO DA PROPRIEDADE DE BENS COMPROVADA. DOLO EVENTUAL. ADMISSIBILIDADE. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. ART. 2º, I, DA LEI 8.137/90. ACRÉSCIMO PATRIMONIAL. DESNECESSIDADE. PARCELAMENTO. NÃO-COMPROVAÇÃO.

(….)

5. A existência do delito anterior é incontroversa, uma vez que o real adquirente dos bens fora condenado anteriormente pelo delito de tráfico de entorpecentes.
6. Não restou comprovada a procedência lícita dos valores, uma vez que existem indícios suficientes nos autos de que os recursos tinham origem na atividade de tráfico de entorpecentes.
7. Configurada a responsabilidade dos acusados que consentiram em figurar como titulares dos bens adquiridos com recursos provenientes do tráfico, desta forma concorrendo para a dissimulação quanto à propriedade.
8. Admite-se o dolo eventual no crime de lavagem, sendo suficiente que atinja a existência do crime antecedente, não se exigindo que o lavador conheça especificamente como se deu a conduta anterior. (….)

A configuração da lavagem comporta três fases, às vezes, não facilmente identificáveis, a seguir:

A) Colocação ou Conversão (placement) – o dinheiro ilícito é inserido na ordem econômico-financeira, porém afastado, quanto possível, de sua origem ilícita.

A palavra-chave aqui é distanciamento;

B) Dissimulação ou Mascaramento (layering) – são realizadas manobras financeiras (por vezes, bastante complexas) para dificultar a detecção da ilicitude dos capitais; maximiza-se o processo iniciado na primeira fase.

A palavra-chave aqui é mascaramento;

C) Integração (recycling) – são reintegrados na economia sob aparência totalmente legal, seja, por exemplo, no meio imobiliário, na compra de obras de arte, veículos, abertura de empresas, etc.
A palavra-chave aqui é retorno.

Para facilitar o entendimento, segue texto extraído do site do COAF – Conselho de Controle de Atividades Financeiras.

” Fases da Lavagem de Dinheiro

Para disfarçar os lucros ilícitos sem comprometer os envolvidos, a lavagem de dinheiro realiza-se por meio de um processo dinâmico que requer: primeiro, o distanciamento dos fundos de sua origem, evitando uma associação direta deles com o crime; segundo, o disfarce de suas várias movimentações para dificultar o rastreamento desses recursos; e terceiro, a disponibilização do dinheiro novamente para os criminosos depois de ter sido suficientemente movimentado no ciclo de lavagem e poder ser considerado “limpo”.

Os mecanismos mais utilizados no processo de lavagem de dinheiro envolvem teoricamente essas três etapas independentes que, com freqüência, ocorrem simultaneamente.

1. Colocação – a primeira etapa do processo é a colocação do dinheiro no sistema econômico. Objetivando ocultar sua origem, o criminoso procura movimentar o dinheiro em países com regras mais permissivas e naqueles que possuem um sistema financeiro liberal. A colocação se efetua por meio de depósitos, compra de instrumentos negociáveis ou compra de bens. Para dificultar a identificação da procedência do dinheiro, os criminosos aplicam técnicas sofisticadas e cada vez mais dinâmicas, tais como o fracionamento dos valores que transitam pelo sistema financeiro e a utilização de estabelecimentos comerciais que usualmente trabalham com dinheiro em espécie.

2. Ocultação – a segunda etapa do processo consiste em dificultar o rastreamento contábil dos recursos ilícitos. O objetivo é quebrar a cadeia de evidências ante a possibilidade da realização de investigações sobre a origem do dinheiro. Os criminosos buscam movimentá-lo de forma eletrônica, transferindo os ativos para contas anônimas – preferencialmente, em países amparados por lei de sigilo bancário – ou realizando depósitos em contas “fantasmas”.

3. Integração – nesta última etapa, os ativos são incorporados formalmente ao sistema econômico. As organizações criminosas buscam investir em empreendimentos que facilitem suas atividades – podendo tais sociedades prestarem serviços entre si. Uma vez formada a cadeia, torna-se cada vez mais fácil legitimar o dinheiro ilegal.

Para disfarçar os lucros ilícitos sem comprometer os envolvidos, a lavagem de dinheiro realiza-se por meio de um processo dinâmico que requer: primeiro, o distanciamento dos fundos de sua origem, evitando uma associação direta deles com o crime; segundo, o disfarce de suas várias movimentações para dificultar o rastreamento desses recursos; e terceiro, a disponibilização do dinheiro novamente para os criminosos depois de ter sido suficientemente movimentado no ciclo de lavagem e poder ser considerado “limpo”.”(http://www.coaf.fazenda.gov.br/links-externos/fases-da-lavagem-de-dinheiro)

Segundo o STF, o crime se consuma independente da realização conjunta daquelas três fases.

Seguido entendimento majoritário dos estudiosos, o crime é cometido contra a ordem econômico-financeira, em que pesem alguns pregarem outras noções. De modo geral, costuma se dizer que o delito é pluriofensivo, vez que atinge vários bens jurídicos: 1) a administração da Justiça; 2) o sistema financeiro; e 3) o sistema econômico.

Processualmente, presente na lei a figura da “colaboração premiada”, um interessante instrumento e meio de prova que pode ser manejado em favor de uma eficiente investigação criminal:

§ 5o A pena poderá ser reduzida de um a dois terços e ser cumprida em regime aberto ou semiaberto, facultando-se ao juiz deixar de aplicá-la ou substituí-la, a qualquer tempo, por pena restritiva de direitos, se o autor, coautor ou partícipe colaborar espontaneamente com as autoridades, prestando esclarecimentos que conduzam à apuração das infrações penais, à identificação dos autores, coautores e partícipes, ou à localização dos bens, direitos ou valores objeto do crime.

A competência para o delito de lavagem de capital é da Justiça Estadual, salvo quando a) praticado em detrimento de bens, serviços ou interesses da União, suas autarquias e empresas públicas; b) quando a infração penal antecedente for da competência da Justiça Federal; c) quando tiver caráter transnacional, segundo ensinamento do Promotor de Justiça Rogério Sanches.

Por fim, é criado, no âmbito do Ministério da Fazenda, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF com a finalidade de disciplinar, aplicar penas administrativas, receber, examinar e identificar as ocorrências suspeitas de atividades ilícitas previstas na Lei, sem prejuízo da competência de outros órgãos e entidades. (Art. 14). Este Conselho, unidade de inteligência financeira do país, que atua na prevenção e combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo, deve coordenar e propor mecanismos de cooperação e de troca de informações que viabilizem ações rápidas e eficientes no combate à ocultação ou dissimulação de bens, direitos e valores.( Art. 14,§ 2º); requerer aos órgãos da Administração Pública as informações cadastrais bancárias e financeiras de pessoas envolvidas em atividades suspeitas (§ 3o); e comunicar às autoridades competentes para a instauração dos procedimentos cabíveis, quando concluir pela existência de crimes previstos nesta Lei, de fundados indícios de sua prática, ou de qualquer outro ilícito (Art. 15).

Comentários

Postar um comentário